sexta-feira, agosto 26, 2005

Sem título II

Avançou confiante. Passos largos, num ritmo constante e carácter decidido. Não viu, não cheirou, não sentiu nada. E durante muito tempo avançou assim, carregada por uma vivacidade moribunda, por um gesto pensado numa incapacidade de pensar. Talvez tenha sido este o segredo que a levou a acordar um dia sem saber onde estava, na certeza de que nada tinha sido um erro, de que o percurso trilhado até ali estivera sempre escrito num mapa visto e revisto na transparência de um impulso.

Já distinguia o verde escuro da madeira pintada do banco de jardim do qual se erguia agora e atentava à voz insistente de criança que lhe rogava para se mudar para qualquer lado que não servisse de baliza de jogo de futebol.

Sentiu fome. Do outro lado da rua havia uma série de casinhas térreas, paredes azuis e telhas laranja, tal desenho de quem pega pela primeira vez numa folha em branco e num estojo de lápis de cor. Uma delas chamava a atenção pelos cortinados rendados que esvoaçavam na corrente de ar. Sem saber exactamente porquê, encaminhou-se na direcção da porta branca rodeada de vitrais com figuras religiosas e bateu suavemente. Rezam as regras da boa educação que deveria ter esperado mais, mas alguma inquietação fê-la voltar a bater, desta vez com mais força. Imaginação alguma haveria de pintar a silhueta que lhe sorria de dentro da casa quando a porta se abriu.

[talvez continue...]

sexta-feira, agosto 05, 2005

Sem título

A vida perguntou-lhe se podia existir nela. Ela consentiu com um sorriso e nunca voltou atrás.

Agarrou nas cartas do passado e envolveu-as num abraço. Cheirou as paredes da casa e as almofadas que lhe lembravam cada amanhecer, lavou os pés e as mãos numa poça de água da chuva no jardim, beijou a terra de joelhos e ao passar para o outro lado do portão olhou pela última vez para o cenário da sua infância.

Virou costas e avançou feliz, disposta a aceitar um mundo por descobrir. Não conhecia mais do que o que deixara para trás. Não era apenas a casa, nem os colegas de infância, nem o cheiro intenso a eucalipto, nem sequer o baloiço ou o pôr-do-sol no telhado. Era o seu mundo, o seu espaço, a sua história.

Mas todas as histórias têm um fim, dito, escrito, contado ou cantado. A vida, essa, acaba e recomeça. Morre e renasce dentro das pessoas. Para ela, estava a renascer pela primeira vez.

[talvez continue...]