O dia em que decidi morrer
Um dia decidi que ia morrer.
Não que estivesse demasiado velha, não que tivesse uma vida difícil, nem sequer problemas de saúde ou de dinheiro. Mas decidi que ia morrer, consciente de que as decisões importantes só podem ser tomadas uma única vez.
Penso que toda a gente já acordou com a sensação de estar a mais no mundo. Foi essa sensação que tive no dia em que me preparei para dizer adeus à vida. Saltei da cama, tomei, pela primeira vez em muitos anos, um banho de água fria, vesti uma roupa confortável e saboreei com prazer uma torrada regada em manteiga e um copo de leite morno.
Gritei à minha mãe um "até logo" e saí de casa apenas com a chave do carro na mão. Guiei calmamente até me cansar e acabei por estacionar o carro em frente a uma loja de brinquedos. Entrei, observei em silêncio todas as bonecas, carrinhos e peluches. Antes de sair, sorri ao velhinho que estava sentado atrás do balcão, a ler um jornal desportivo, mas apercebi-me de que tinha sido em vão, porque ele nunca levantara a cabeça desde que eu ali tinha chegado.
A chave já estava na ignição quando, de repente, me deu vontade de passear um pouco a pé. Caminhei sempre pelo lado esquerdo da estrada de alcatrão, como me ensinaram na escola primária, sem pensar em nada. Uma senhora muito gorda passou do outro lado da rua em direcção oposta e eu cumprimentei-a, embora me fosse totalmente desconhecida. Não sei quanto tempo andei naquelas ruas estreitas, sem passeio, com casinhas pequenas em cima da estrada. Sei que fiquei com fome e voltei para trás.
Procurei o porta-moedas que costumo deixar no porta-luvas e conduzi em busca de um sítio onde pudesse almoçar. Encontrei algures um supermercado e lá comprei um pão, uma fatia de queijo, uma fatia de fiambre, um sumo e uma maçã. Comi devagar, ao som de uma cassete de um cantor francês. Quando acabei, recostei o banco e adormeci.
Acordei a meio da tarde, sobressaltada, com um homem a bater furiosamente no vidro do lado do passageiro. Estava estacionada em frente a uma garagem e nem tinha reparado! Desculpei-me como pude e segui até à praia. Era Inverno, fazia muito vento. A praia estava deserta. Despi-me e aventurei-me no mar que não estava nada calmo. Não tive receio, sabia que nada me ia acontecer. Devo ter ficado dentro de água mais de uma hora, porque quando saí o sol já parecia querer descansar. Sequei-me com a t-shirt que vestia por baixo da camisola de lã.
Já estava escuro quando toquei à campainha de casa do Guilherme. Ele fez cara de espanto ao ver-me. Depois de um beijo, convidou-me para jantar. Recusei, dizendo que só tinha passado para lhe dizer que o amava e que ia estar sempre com ele. Não esperei por perguntas e apertei-o num abraço. Outro beijo. Virei costas e olhei uma última vez pelo retrovisor para a sua expressão embevecida.
Fui para casa, jantei com a família e deitei-me. Antes de adormecer, agradeci a Deus por me ter oferecido uma vida maravilhosa. Na manhã seguinte, não acordei. Os médicos chamaram-lhe "paragem cardíaca". Eu chamo-lhe fim.
Não que estivesse demasiado velha, não que tivesse uma vida difícil, nem sequer problemas de saúde ou de dinheiro. Mas decidi que ia morrer, consciente de que as decisões importantes só podem ser tomadas uma única vez.
Penso que toda a gente já acordou com a sensação de estar a mais no mundo. Foi essa sensação que tive no dia em que me preparei para dizer adeus à vida. Saltei da cama, tomei, pela primeira vez em muitos anos, um banho de água fria, vesti uma roupa confortável e saboreei com prazer uma torrada regada em manteiga e um copo de leite morno.
Gritei à minha mãe um "até logo" e saí de casa apenas com a chave do carro na mão. Guiei calmamente até me cansar e acabei por estacionar o carro em frente a uma loja de brinquedos. Entrei, observei em silêncio todas as bonecas, carrinhos e peluches. Antes de sair, sorri ao velhinho que estava sentado atrás do balcão, a ler um jornal desportivo, mas apercebi-me de que tinha sido em vão, porque ele nunca levantara a cabeça desde que eu ali tinha chegado.
A chave já estava na ignição quando, de repente, me deu vontade de passear um pouco a pé. Caminhei sempre pelo lado esquerdo da estrada de alcatrão, como me ensinaram na escola primária, sem pensar em nada. Uma senhora muito gorda passou do outro lado da rua em direcção oposta e eu cumprimentei-a, embora me fosse totalmente desconhecida. Não sei quanto tempo andei naquelas ruas estreitas, sem passeio, com casinhas pequenas em cima da estrada. Sei que fiquei com fome e voltei para trás.
Procurei o porta-moedas que costumo deixar no porta-luvas e conduzi em busca de um sítio onde pudesse almoçar. Encontrei algures um supermercado e lá comprei um pão, uma fatia de queijo, uma fatia de fiambre, um sumo e uma maçã. Comi devagar, ao som de uma cassete de um cantor francês. Quando acabei, recostei o banco e adormeci.
Acordei a meio da tarde, sobressaltada, com um homem a bater furiosamente no vidro do lado do passageiro. Estava estacionada em frente a uma garagem e nem tinha reparado! Desculpei-me como pude e segui até à praia. Era Inverno, fazia muito vento. A praia estava deserta. Despi-me e aventurei-me no mar que não estava nada calmo. Não tive receio, sabia que nada me ia acontecer. Devo ter ficado dentro de água mais de uma hora, porque quando saí o sol já parecia querer descansar. Sequei-me com a t-shirt que vestia por baixo da camisola de lã.
Já estava escuro quando toquei à campainha de casa do Guilherme. Ele fez cara de espanto ao ver-me. Depois de um beijo, convidou-me para jantar. Recusei, dizendo que só tinha passado para lhe dizer que o amava e que ia estar sempre com ele. Não esperei por perguntas e apertei-o num abraço. Outro beijo. Virei costas e olhei uma última vez pelo retrovisor para a sua expressão embevecida.
Fui para casa, jantei com a família e deitei-me. Antes de adormecer, agradeci a Deus por me ter oferecido uma vida maravilhosa. Na manhã seguinte, não acordei. Os médicos chamaram-lhe "paragem cardíaca". Eu chamo-lhe fim.
5 Comments:
q triste, pah. bem escrito, mas triste.
muitas muitas vezes ja tive vontade de não acordar, de dormir para sempre, mas ainda bem que isso ainda nao se realizou. tenho muito para viver ainda. tenho muito para sorrir, para amar, para sofrer, para brincar, para gritar, para chorar...enfim, para viver.
jinhus
Eia!
A propósito do meu acidente no passado Sábado e em conversa com a minha mãe disse-lhe:
"Sabes... se morresse agora não tinha qualquer problema; tenho tudo resolvido por cá, não tenho problemas com ninguém... por isso... ia em paz. Gosto muito de cá andar... mas se soubesse que ia morrer não me revoltava!"
E ela... só olhava para mim... com os olhos marejados de lágrimas!
Jinhus gandes
Sue
Por acaso nunca tive um dia assim.
Acho que eu tenho um protecção contra depressões ou o crl, visto que já estou tão habituado a andar deprimido por causa das problemas de amor e afins (principalmente de amor) que mais deprimido que isto não pode ficar.
Mas a ler este post, senti-me mesmo atraído pela leitura, como quem lê um livro de Sir Arthur Conan Doyle (autor dos livros de Sherlock Holmes, que eu lia como um Ferrari consume gasolina) ou mesmo da mais recente autora, J. K. Rowling (autora do Harry Potter, livro tão viciante que cheguei a ler o 5º livro em apenas 3 dias de directas). lady_bird, tens uma escrita simples e ao mesmo tempo complexa, que me impulsionou a ler o texto até chegar ao fim. Não senti nenhum momento de paragem ou aborrecimento ao lê-lo, como seria normal com tantos blogs (o meu, por exemplo) e integrei-me na personagem muito facilmente. Como já te disse, tens jeito para escrever e se arranjasses tempo e inspiração para fazer um livro, tenho a certeza absoluta que seria de imediato um best-seller.
É mesmo uma grande habilidade, conseguir criar uma personagem carismática com tão pouco texto.
Parabéns.
RiCON
Eu agora reli o texto a ouvir uma música especial. Senti-me ainda mais emocionado. É fantástico, fizeste um texto feito para ter banda sonora! lol
Para quem quiser experimentar, que ouça: Adagio for Strings de Samuel Barber
Belo texto!
Muito realista!
Gosto muito de te ler
singularidade
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