Como quem dança
Já tinha saudades de deixar alguma coisa no blog! Como não tenho tido tempo para cá vir "matraquear" - como diz a minha mãe - o que me vai passando pela cabeça, fui ao Word e copiei para cá um textinho que fiz para o concurso "Uma Aventura Literária". Não espero que gostem ou que desgostem. Para mim é um orgulho saber que ainda tenho imaginação para escrever alguma coisita completamente inventada. E é ao Luís que devo a recuperação do meu gosto pela escrita!
Como quem dança
Lá na cidade onde eu moro, existe uma longa calçada, com árvores dos dois lados, que desce até à estação de comboio.
Naquele dia, acordei à mesma hora de sempre, tomei o mesmo pequeno-almoço de sempre e segui, como sempre, para a estação. Percorro a calçada desde criança, portanto habituei-me a ignorar os pedintes que por lá vão estendendo as mãos a quem passa. Mas, naquele dia, não pude deixar de reparar num palhaço que encenava uma peça qualquer, que não sei dizer se seria ou não improvisada, pois não prestei a mínima atenção. Senti desprezo, repugnância. Como era possível que alguém desperdiçasse o seu tempo a assistir ao pobre espectáculo de um miserável que tinha escolhido não procurar um emprego a sério para ganhar meios de subsistência?! E eu que me fartava de estudar para um futuro incerto! Pelo menos, podia orgulhar-me dos bons resultados. Entrei no comboio e não voltei a pensar no assunto.
No dia seguinte, saí de casa mais cedo. Tinha planeado ir até à biblioteca da universidade procurar uns livros. À entrada da calçada, mais uma novidade. Desta vez, era um homem-estátua. Até hoje, não percebo o que me levou a parar para o observar. Vestia calças e casaco escuro, a camisa era prateada, feita de um material idêntico ao plástico dos sacos do lixo – e talvez fosse mesmo isso –, e a única peça colorida era o laço vermelho. A cara estava pintada de branco, à excepção dos lábios, que tinham exactamente a mesma cor do laço. Enquanto uma mão segurava a cartola em cima da cabeça, a outra ficava atrás das costas, em jeito de vénia.
Olhei para o relógio e verifiquei que já tinha perdido o comboio. Nesse preciso momento, invadiu-me o mesmo sentimento de repulsa do dia anterior! Afinal, por que é que eu tinha ficado ali a admirar aquele indivíduo insignificante, que não exercia absolutamente nenhuma influência sobre o que se passa no mundo?! Resignada, sentei-me num banco por baixo de uma árvore, decidida a aproveitar para estudar, enquanto esperava pelo próximo comboio. Pouco depois, ouvi uma voz entusiasmada de criança a pedir à mãe para colocar uma moeda na caixinha de lata do homem-estátua. Revoltou-me a facilidade com que aquela mãe cedeu ao pedido da filha, mas, sem querer, deixei que a minha cabeça se levantasse e dei por mim imóvel, expectante. Aquela figura que tanto tinha de caricato como de imponente estava a mexer-se e eu não conseguia desviar a minha atenção dos seus movimentos. Lentamente, virou a cartola ao contrário e, com a mão que até aí estava atrás das costas, retirou uma flor branca de papel que ofereceu à menina. Com o mesmo langor, retomou a posição de estátua. A minha mente ficou branca como a flor, não me lembro de uma única impressão, um único pensamento.
Era sexta-feira e, apesar do frio que se fazia sentir naquela manhã de Dezembro, estava sol. O despertador tinha tocado, mas eu desligara-o com uma pancada seca e corria agora para tentar chegar a tempo à estação. Eis que, ao cruzar a esquina que dava para a calçada, embato violentamente em alguém e todo o meu material se espalha pelo chão.
_ Peço imensa desculpa, menina! Vinha distraído, deixe-me ajudá-la.
A voz que ouvia era doce e talvez esse tenha sido o único motivo que me impediu de explodir, de descarregar de uma só vez todo o meu nervosismo numa pessoa que teve o azar de aparecer no meu caminho naquela manhã. Quando me pus de pé, os meus olhos encontraram-se com duas grandes luas verdes e isso acalmou-me.
_ Tudo bem. Estava atrasada e vinha a correr, porque os transportes públicos não esperam por ninguém. Agora já não há nada a fazer. Tem um bom dia e perdoa-me se te magoei.
Tomei a liberdade de o tratar por “tu”, uma vez que se tratava de um rapaz que deveria ter mais ou menos a minha idade. Preparava-me para continuar a andar, quando ele me surpreendeu, questionando-me:
_ A menina não gosta muito de palhaços, pois não?
_ Por favor, dispenso formalidades, devemos ter a mesma idade. E quanto a palhaços, não sei se gosto ou não gosto. Mas o que importa?
_ Menina, onde está o sonho em si?
Permaneceu uns segundos em silêncio, durante os quais não fui capaz de proferir uma única palavra, até que me convidou a acompanhá-lo até ao café mais próximo. Aproveitei então para tomar o pequeno-almoço, já que não tinha comido nada em casa.
_ O que fazes da vida? - perguntei, entre duas dentadas num bolo de chocolate.
_ Aproveito-a. Aproveito cada sorriso de criança, cada nascer ou pôr-do-sol, cada folha de árvore que vejo cair no Outono e cada flor que vejo crescer na Primavera, cada música que ouço, cada livro que leio e até cada dentada que dou no meu croissant com queijo! Aproveito todos os momentos. E vivo livre, como quem dança.
_ Quem dança é livre?
Então ele pegou-me, fez-me levantar da cadeira, colou-me ao seu peito e rodopiou comigo por entre as mesas onde estavam muitos outros clientes, enquanto trauteava uma melodia alegre. Podia ter-me sentido envergonhada, embaraçada, ridícula. Mas tive uma sensação estranha de leveza, de… liberdade! Não disse nada. Retribuí um sorriso amável e apressei-me a sair dali, porque ainda ia a tempo da segunda aula.
Ao fim da tarde, subi a calçada à procura do palhaço ou do homem-estátua. Queria apreciar o trabalho daqueles artistas, cujo valor havia posto em causa com tanta frieza. Queria desculpar-me de alguma forma, por ter julgado injustamente que aquele era um trabalho insignificante. E lá estava o homem-estátua, com o seu vistoso fato de ilusionista. Fiz soar o tilintar de uma moeda na caixinha de lata e contemplei fascinada o gesto lento e demorado da personagem. Inesperadamente, o que ele tirou da cartola não foi uma flor, mas sim um cartão vermelho. O mesmo vermelho vivo do laço e dos lábios. Continha uma mensagem escrita com tinta branca: “Eu sabia que te voltaria a ver. O palhaço e o mágico têm que ir embora, mas gostariam que te lembrasses sempre de que a vida é como uma dança”. Agradeci-lhe em silêncio e ele, como se me tivesse ouvido, piscou um dos seus grandes olhos verdes. E foi a última vez que o vi.
Começou a chover, mas eu continuei a andar despreocupada, enquanto cada gota de chuva me purificava o corpo e a alma, preparada para acolher uma nova descoberta.
Sei agora que o caminho para a felicidade é demasiado simples para nos ser ensinado. Ainda estou longe de atingir a meta, mas o facto de me encontrar no ponto de partida é o suficiente para me fazer sentir livre… como quem dança!
8 Comments:
texto lindo. abordagem simples mas perfeita. adoro-o! =) *
texto lindo. abordagem simples mas perfeita. adoro-o!=)*
texto de uma simplicidade tão bela. gostei bastante;)
Eu assino por baixo do que aquelas duas senhoras ali em cima disseram!
Tem faltado o tempo para nos vires aqui deixar estas coisas tão belas e bonitas de ler....
Ai o amor....
Beijo.
Gostei muito do texto.Fiquei pensando sobre várias coisas enquanto lia. você escreve bem, hein, menina! :)
Eia!
Pois é, minha linda... parece que voltaste em grande para o meio de nós! Adorei o teu texto :)
Entretanto aparece no meu blog e lê o post "Sai uma batata quente" e pronto... é só aceitares (ou não!) o desafio!
Jinhus gandes
"o caminho para a felicidade é demasiado simples para nos ser ensinado"
Adorei as tuas palavras. Sim, a felicidade é simples, e não vale a pena complicar o que é simples!
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